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05/09/2012, 21:49h | Notícias

Relatório descreve situação precária nos “Abrigos especializados” para Crianças e Adolescentes.

Relatório descreve situação precária nos “Abrigos especializados” para Crianças e Adolescentes.
O Relatório de Visitas aos “Abrigos Especializados” para Crianças e Adolescentes divulgado no último dia 17 de agosto, pelos Conselhos Regionais de Psicologia e Serviço Social em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, o Grupo Tortura Nunca Mais, o Projeto Legal e a Comissão de Direitos Humanos e de organismos de prevenção e combate à tortura da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), apontou graves questões em relação ao recolhimento compulsório de jovens em situação de rua que estão sob a proteção do Estado. O relatório demonstra que falta informações e dados sobre o resultado do tratamento, além de questionar as violações de diretrizes dos Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social constatadas no isolamento de crianças e adolescentes. O relatório citou também que existe um uso descontrolado de medicamentos em crianças e adolescentes que supostamente seriam usuários de drogas. Foram fiscalizados quatro “abrigos especializados” localizados na Zona Oeste do Rio, que são geridos pela instituição Casa Espírita Tesloo, que é presidida por um policial militar reformado e questionado pelo Tribunal de Contas do Município. Nesta edição, conversamos com a psicóloga do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, Alice De Marchi que participou da fiscalização e da elaboração do relatório.
PRVL: Como o Relatório de Visitas aos ‘Abrigos Especializados’ para Crianças e Adolescentes foi realizado? Quais foram às dificuldades e surpresas encontradas durante o processo?
Alice De Marchi: O início desse processo localiza-se em maio de 2011, quando a Resolução nº 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social foi publicada, implementando uma política de retirada forçada de crianças e adolescentes das ruas em decorrência de suposto uso de crack por elas. Na época, chamou a atenção de diversos grupos da sociedade civil, conselhos e alguns setores de órgãos públicos a quantidade de violações contidas naquele documento, apesar do conhecimento por parte do Ministério Público. Foi realizada uma audiência pública naAssembléia Legislativa em novembro, onde isso foi discutido e um dos encaminhamentos foi à realização de fiscalizações a locais onde crianças e adolescentes eram compulsoriamente internados. O relatório foi produzido a partir destas fiscalizações, realizadas em maio de 2012 a quatro abrigos localizados na Zona Oeste e voltados para o público citado. As visitas foram realizadas pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ em parceria com entidades membros do Comitê Estadual para Prevenção e Combate à Tortura/RJ – Conselho Regional de Psicologia (CRP/RJ), Conselho Regional de Serviço Social (CRESS/RJ) e o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ –, o Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio e o Mecanismo Estadual para Prevenção e Combate à Tortura. As dificuldades foram encontradas já na tentativa de localizar esses abrigos, extremamente isolados, fora de centros urbanos. As equipes levaram mais de uma hora do centro do Rio até os locais, depois de terem se perdido algumas vezes. Outras dificuldades foram: a falta de informações sobre articulação dos abrigos com a rede pública de saúde; a falta de clareza sobre a natureza desses locais (abrigos ou clínicas?); a inconsistência de informações sobre crianças e adolescentes depois que saem desses locais de “tratamento”. Também gostaríamos de ter publicado o relatório antes, mas justamente ficamos buscando esclarecimentos e mais informações, o que atrasou o processo. Fora isso, temos feito o esforço de esclarecer algumas abordagens sensacionalistas da grande imprensa e deixar claro que o problema não está nos trabalhadores desses locais, e sim na política como um todo.
PRVL: O relatório revelou que são usados medicamentos no tratamento de crianças e adolescentes recolhidos nas ruas e levados para os “abrigos especializados”. Qual a função desses remédios?
AM: Talvez seja melhor falar em termos de efeitos desses remédios. Entre os medicamentos usados nos quatro abrigos, havia desde antialérgicos a medicamentos psiquiátricos para sintomas psicóticos. A maioria deles tem efeitos calmantes. Na combinação do que foi descrito por alguns integrantes das equipes ouvidas e por alguns adolescentes como “Sossega Leão” ou “S.O.S”, a junção de Fenergan e Haldol em uma injeção tinha a função de “acalmar” os internos. Dois adolescentes contaram que há quem durma por dois dias seguidos depois de uma injeção assim.
PRVL: A partir das entrevistas realizadas com gestores e funcionários dos “Abrigos especializados” o relatório demonstra que existe uma “confusão deliberada” entre internação e abrigamento, ou seja, entre tratamento químico, de desintoxicação de drogas como o álcool entre outras, e assistência social. Pode-ser dizer que crianças e adolescentes em situação de rua recebem o mesmo tratamento do ponto de vista da ingestão de medicamentos mesmo quando não são dependentes químicos?
AM: O próprio protocolo prevê o recolhimento compulsório mesmo de crianças e adolescentes que não estejam usando drogas. Sabendo que em um dos abrigos foi relatado que todos recebiam a mesma combinação de medicamentos, é possível, sim, que crianças e adolescentes que não estivessem fazendo uso de álcool ou outras drogas estivessem sendo medicadas, mas não podemos afirmar com certeza.
PRVL: Qual a relação que pode ser feita entre o tratamento dos “abrigos especializados” analisados durante a pesquisa, e o sistema manicomial?
AM: Infelizmente, há várias semelhanças: o local distante da de centros urbanos, o difícil acesso, a privação de liberdade de seus internos na lógica “internar para tratar’, a medicalização excessiva e generalizada. Tudo isso reproduz a lógica manicomial. Além disso, foi relatado que um mesmo psiquiatra atendia aos quatro abrigos e, mais tarde, constatou-se que não havia articulação desses locais com os serviços de saúde locais. Esse fechamento da instituição em si mesmo também é característico do modelo manicomial. Mas talvez o que mais aproxime esse modelo ao do século XIX e início do XX (época do grande encarceramento e das instituições totais) seja essa ação de cunho higienista de “limpar” a cidade, removendo e isolando sujeitos de alguma forma indesejáveis, desviantes em relação a um suposto padrão, não trabalhadores, não consumidores, que obstruem as cidades, lugar de passagem, de circulação e de visibilidade, para locais onde seriam “corrigidos”, “tratados”, “curados”, ou simplesmente abandonados (no caso das internações de longa duração).
PRVL: “Relatos dão conta de crianças que foram recolhidas compulsoriamente por até três vezes em um curto espaço de tempo, bem como de crianças que ficam três meses em um dos estabelecimentos (tempo máximo de permanência) e que, em seguida, são transferidos para outro da mesma organização gestora, sem que para isso haja avaliação e justificativas técnicas.” Existem políticas públicas que asseguram a integração plena dos jovens que passam por esses abrigos após o período de internação?
Não existem. Nem deveriam existir. Aí é que está a questão: já existem, ao menos no papel, políticas territoriais, isto é, pensadas para não precisar haver uma “saída” do local de origem e moradia para uma posterior “reinserção” ou “reintegração”. Esses serviços são os CAPS, CAPS-AD, CAPS, os Consultórios de Rua, as Unidades de Acolhimento, bem como CRAS e CREAS, entre outros (serviços da saúde, da assistência, que devem funcionar integrados ainda com políticas de educação e outras áreas). Há inclusive o repasse federal das verbas para a construção e implementação desses serviços, mas o que vemos no município é uma rede ainda diminuta, precária, que obviamente não dá conta da demanda. Assim, mais do que políticas de reintegração desses jovens, é preciso implementar imediatamente essa rede territorial e integrada de forma a nem mesmo ter de tirá-los de perto de sua família e comunidade, o que também possibilita um enfrentamento bem mais efetivo ao uso indevido de álcool e outras drogas.
A Lei de Saúde Mental prevê o tratamento aberto, com convívio comunitário, sem o isolamento. Porém o relatório demonstra que a lei não tem sido cumprida nos abrigos analisados. Existe alguma fiscalização nesses casos e o que deve ser feito a partir dos resultados do relatório?
AM: A fiscalização pode ser feita por diversos órgãos competentes para tanto. O CRP, o CRESS, a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, o Mecanismo para Prevenção e Combate à Tortura, que fizeram essa fiscalização, são alguns deles. Também poderíamos citar o próprio Ministério Público, a OAB, os Conselhos de Enfermagem e Nutrição (como de fato participaram de fiscalizações realizadas aos mesmos abrigos, no ano passado), entre outros. Uma das – digamos – “armadilhas” nisso tudo, porém, é que esses abrigos estão registrados em órgãos da Assistência, e não da Saúde.
Alice di Marchi. Foto: Arquivo Pessoal

Alice di Marchi. Foto: Arquivo Pessoal

Silvana Bahia

O Relatório de Visitas aos “Abrigos Especializados” para Crianças e Adolescentes divulgado no último dia 17 de agosto, pelos Conselhos Regionais de Psicologia e Serviço Social em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, o Grupo Tortura Nunca Mais e a Comissão de Direitos Humanos e de organismos de prevenção e combate à tortura da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), apontou graves questões em relação ao recolhimento compulsório de jovens em situação de rua que estão sob a proteção do Estado. O relatório demonstra que falta informações e dados sobre o resultado do tratamento, além de questionar as violações de diretrizes dos Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social constatadas no isolamento de crianças e adolescentes. O relatório citou também que existe um uso descontrolado de medicamentos em crianças e adolescentes que supostamente seriam usuários de drogas. Foram fiscalizados quatro “abrigos especializados” localizados na Zona Oeste do Rio, que são geridos pela instituição Casa Espírita Tesloo, que é presidida por um policial militar reformado e questionado pelo Tribunal de Contas do Município. Nesta edição, conversamos com a psicóloga do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, Alice De Marchi que participou da fiscalização e da elaboração do relatório.

PRVL: Como o Relatório de Visitas aos ‘Abrigos Especializados’ para Crianças e Adolescentes foi realizado? Quais foram às dificuldades e surpresas encontradas durante o processo?

Alice De Marchi: O início desse processo localiza-se em maio de 2011, quando a Resolução nº 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social foi publicada, implementando uma política de retirada forçada de crianças e adolescentes das ruas em decorrência de suposto uso de crack por elas. Na época, chamou a atenção de diversos grupos da sociedade civil, conselhos e alguns setores de órgãos públicos a quantidade de violações contidas naquele documento, apesar do conhecimento por parte do Ministério Público. Foi realizada uma audiência pública naAssembléia Legislativa em novembro, onde isso foi discutido e um dos encaminhamentos foi à realização de fiscalizações a locais onde crianças e adolescentes eram compulsoriamente internados. O relatório foi produzido a partir destas fiscalizações, realizadas em maio de 2012 a quatro abrigos localizados na Zona Oeste e voltados para o público citado. As visitas foram realizadas pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ em parceria com entidades membros do Comitê Estadual para Prevenção e Combate à Tortura/RJ – Conselho Regional de Psicologia (CRP/RJ), Conselho Regional de Serviço Social (CRESS/RJ) e o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ –, o Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio e o Mecanismo Estadual para Prevenção e Combate à Tortura. As dificuldades foram encontradas já na tentativa de localizar esses abrigos, extremamente isolados, fora de centros urbanos. As equipes levaram mais de uma hora do centro do Rio até os locais, depois de terem se perdido algumas vezes. Outras dificuldades foram: a falta de informações sobre articulação dos abrigos com a rede pública de saúde; a falta de clareza sobre a natureza desses locais (abrigos ou clínicas?); a inconsistência de informações sobre crianças e adolescentes depois que saem desses locais de “tratamento”. Também gostaríamos de ter publicado o relatório antes, mas justamente ficamos buscando esclarecimentos e mais informações, o que atrasou o processo. Fora isso, temos feito o esforço de esclarecer algumas abordagens sensacionalistas da grande imprensa e deixar claro que o problema não está nos trabalhadores desses locais, e sim na política como um todo.

PRVL: O relatório revelou que são usados medicamentos no tratamento de crianças e adolescentes recolhidos nas ruas e levados para os “abrigos especializados”. Qual a função desses remédios?

AM: Talvez seja melhor falar em termos de efeitos desses remédios. Entre os medicamentos usados nos quatro abrigos, havia desde antialérgicos a medicamentos psiquiátricos para sintomas psicóticos. A maioria deles tem efeitos calmantes. Na combinação do que foi descrito por alguns integrantes das equipes ouvidas e por alguns adolescentes como “Sossega Leão” ou “S.O.S”, a junção de Fenergan e Haldol em uma injeção tinha a função de “acalmar” os internos. Dois adolescentes contaram que há quem durma por dois dias seguidos depois de uma injeção assim.

PRVL: A partir das entrevistas realizadas com gestores e funcionários dos “Abrigos especializados” o relatório demonstra que existe uma “confusão deliberada” entre internação e abrigamento, ou seja, entre tratamento químico, de desintoxicação de drogas como o álcool entre outras, e assistência social. Pode-ser dizer que crianças e adolescentes em situação de rua recebem o mesmo tratamento do ponto de vista da ingestão de medicamentos mesmo quando não são dependentes químicos?

AM: O próprio protocolo prevê o recolhimento compulsório mesmo de crianças e adolescentes que não estejam usando drogas. Sabendo que em um dos abrigos foi relatado que todos recebiam a mesma combinação de medicamentos, é possível, sim, que crianças e adolescentes que não estivessem fazendo uso de álcool ou outras drogas estivessem sendo medicadas, mas não podemos afirmar com certeza.

PRVL: Qual a relação que pode ser feita entre o tratamento dos “abrigos especializados” analisados durante a pesquisa, e o sistema manicomial?

AM: Infelizmente, há várias semelhanças: o local distante da de centros urbanos, o difícil acesso, a privação de liberdade de seus internos na lógica “internar para tratar’, a medicalização excessiva e generalizada. Tudo isso reproduz a lógica manicomial. Além disso, foi relatado que um mesmo psiquiatra atendia aos quatro abrigos e, mais tarde, constatou-se que não havia articulação desses locais com os serviços de saúde locais. Esse fechamento da instituição em si mesmo também é característico do modelo manicomial. Mas talvez o que mais aproxime esse modelo ao do século XIX e início do XX (época do grande encarceramento e das instituições totais) seja essa ação de cunho higienista de “limpar” a cidade, removendo e isolando sujeitos de alguma forma indesejáveis, desviantes em relação a um suposto padrão, não trabalhadores, não consumidores, que obstruem as cidades, lugar de passagem, de circulação e de visibilidade, para locais onde seriam “corrigidos”, “tratados”, “curados”, ou simplesmente abandonados (no caso das internações de longa duração).

PRVL: “Relatos dão conta de crianças que foram recolhidas compulsoriamente por até três vezes em um curto espaço de tempo, bem como de crianças que ficam três meses em um dos estabelecimentos (tempo máximo de permanência) e que, em seguida, são transferidos para outro da mesma organização gestora, sem que para isso haja avaliação e justificativas técnicas.” Existem políticas públicas que asseguram a integração plena dos jovens que passam por esses abrigos após o período de internação?

AM: Não existem. Nem deveriam existir. Aí é que está a questão: já existem, ao menos no papel, políticas territoriais, isto é, pensadas para não precisar haver uma “saída” do local de origem e moradia para uma posterior “reinserção” ou “reintegração”. Esses serviços são os CAPS, CAPS-AD, CAPS, os Consultórios de Rua, as Unidades de Acolhimento, bem como CRAS e CREAS, entre outros (serviços da saúde, da assistência, que devem funcionar integrados ainda com políticas de educação e outras áreas). Há inclusive o repasse federal das verbas para a construção e implementação desses serviços, mas o que vemos no município é uma rede ainda diminuta, precária, que obviamente não dá conta da demanda. Assim, mais do que políticas de reintegração desses jovens, é preciso implementar imediatamente essa rede territorial e integrada de forma a nem mesmo ter de tirá-los de perto de sua família e comunidade, o que também possibilita um enfrentamento bem mais efetivo ao uso indevido de álcool e outras drogas.

A Lei de Saúde Mental prevê o tratamento aberto, com convívio comunitário, sem o isolamento. Porém o relatório demonstra que a lei não tem sido cumprida nos abrigos analisados. Existe alguma fiscalização nesses casos e o que deve ser feito a partir dos resultados do relatório?

AM: A fiscalização pode ser feita por diversos órgãos competentes para tanto. O CRP, o CRESS, a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, o Mecanismo para Prevenção e Combate à Tortura, que fizeram essa fiscalização, são alguns deles. Também poderíamos citar o próprio Ministério Público, a OAB, os Conselhos de Enfermagem e Nutrição (como de fato participaram de fiscalizações realizadas aos mesmos abrigos, no ano passado), entre outros. Uma das – digamos – “armadilhas” nisso tudo, porém, é que esses abrigos estão registrados em órgãos da Assistência, e não da Saúde.

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