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04/07/2012, 23:08h | Notícias

Eca 22 anos

Por Thiago Ansel

Mais de duas décadas ainda é pouco tempo. Apesar de ter introduzido sensíveis mudanças ao estabelecer mecanismos de garantia de direitos, ainda há muito o que fazer para que o Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca) — promulgado em 13 de julho de 1990 –, seja plenamente apropriado pela sociedade no cotidiano.  Isto éo que conta a coordenadora da Associação Nacional dos Centros de Defesa de Crianças e Adolescentes, a cientista política Perla Ribeiro. “A grande resistência veio de quem, até então, exerceu autoridade máxima sobre as crianças e os adolescentes”, afirma a respeito da dificuldade no amplo reconhecimento da condição de sujeitos de direitos destes cidadãos.

Perla ressalta ainda a necessidade de se pensar os direitos humanos de crianças e adolescentes, para além do ato infracional, concentrando-se mais na importância de direitos como educação, saúde, esporte e lazer e de viver em ambientes não violentos e menos no modelo repressivo-correcional que dá evidentes sinais de esgotamento.

PRVL: Nestes 22 anos de promulgação do Eca, a sociedade conseguiu avançar no que diz respeito à incorporação de valores democráticos, quando o tema são os direitos da criança e do adolescente?

Temos alguns avanços, mas não podemos perder de vista a dimensão histórica. Vinte e dois anos é muito recente para uma mudança efetiva de mentalidade, sobretudo, para um país que não havia pensado nas crianças e adolescentes como sujeitos de direitos até então (Divulgação)

Temos alguns avanços, mas não podemos perder de vista a dimensão histórica. Vinte e dois anos é muito recente para uma mudança efetiva de mentalidade, sobretudo, para um país que não havia pensado nas crianças e adolescentes como sujeitos de direitos até então (Divulgação)

Perla Ribeiro: Temos alguns avanços, mas não podemos perder de vista a dimensão histórica. Vinte e dois anos é muito recente para uma mudança efetiva de mentalidade, sobretudo, para um país que não havia pensado nas crianças e adolescentes como sujeitos de direitos até então. Esta percepção de que a garantia dos direitos é fundamental ainda exige muita luta dos militantes e muito trabalho para se tornar realidade.

Na prática, em termos de estruturas de serviços ainda temos muito pouco. São poucas áreas, por exemplo, poucas delegacias especializadas em lidar com questões da infância e adolescência. Avançamos no estabelecimento de conselhos tutelares e conselhos de direitos. No entanto, ainda há pouca efetividade, ocasionada também pelo descaso das autoridades e operadores de direito em geral. O exemplo dos conselhos tutelares é claro: temos os órgãos, mas seu funcionamento geralmente é precário.

PRVL: Como você avalia a apropriação do Eca no dia a dia, tanto pelas crianças e adolescentes, quanto pelos adultos que lidam diretamente com eles (família, instituições etc.)?

P.R.: Toda mudança paradigmática traz resistência. No caso do Eca, a grande resistência veio de quem, até então, exerceu autoridade máxima sobre as crianças e os adolescentes. Hoje, temos avançado, por exemplo, no que diz respeito à disposição das escolas no campo da formação em direitos humanos. De outro lado, quando se olha para a sociedade em geral, nos deparamos com uma enorme resistência em reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos. É como se isso significasse a perda de autoridade, quando na verdade significa que a criança e o adolescente passam a ter o direito de falar e opinar.

Vejo, entretanto, que as pessoas hoje reconhecem a existência dos Conselhos Tutelares e também não encaram mais uma agressão física contra uma criança algo aceitável, ou como sendo fato que deva ser relegado ao âmbito privado. O que faz com que as pessoas venham denunciando cada vez mais.

A contradição é que temos ainda uma forte tendência que considera que o Eca“passa a mão na cabeça” das crianças e adolescentes, sobretudo,daqueles autores de ato infracional. Isto indica que também temos que ultrapassar esse olhar para o direito apenas voltado para o ato infracional. Direitos humanos também são educação, saúde, esporte e lazer, viver em ambientes não violentos . Precisamos romper com estes valores anteriores que enxergam o Eca como excesso de direitos.

PRVL: Qual é o papel dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedecas) frente ao poder público, em relação ao cumprimento do que determina o Eca?

P.R.: Temos um artigo no próprio Eca que prevê o trabalho dos Centros de Defesa. Temos como pressuposto a atuação jurídico-social para além da judicialização dos casos de violação de direitos. Os atendimentos que fazemos tem também uma perspectiva de incidência política para efetivação dos direitos, muito vinculada ao controle social do executivo, Ministério Público e outros órgãos de Estado.Muitas vezes o Estado é quem comete as maiores violações de direitos. E aí destaca-se também a importância do controle social no orçamento. Acompanhar a destinação de recursos é essencial, justamente, para estarmos atentos sobre que condições as políticas terão de ser implementadas de fato. Hoje, existem centros de defesa que entram com ações contra estados que não tem previsão de recursos para a promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Quando o Estado não disponibiliza recursos fundamentais para implementação de políticas que garantam estes direitos, é ele que quem está violando os direitos.

PRVL: Segundo a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos(SDH), 70% das crianças e adolescentes que cumprem medida socioeducativa, voltam a praticar atos infracionais. Sabe-se que nas unidades de internação, por exemplo, ainda predomina o modelo repressivo-correcional, que, como revela o dado, traz prejuízos para a sociedade. A quem interessa reafirmar que este modelo, com notória orientação autoritária e punitiva, é a melhor forma de lidar com crianças e adolescentes autores de atos infracionais?

P.R.: Ainda é um desafio romper com a cultura dos antigos códigos de menores.Muitas unidades de internação que temos hoje tem heranças deste modelo. Muda-se o nome das unidades, mas muitas das práticas continuam as mesmas. A questão é colocar fazer valer a legislação vigente. Existem dados de municípios que investiram em medidas em meio aberto e tiveram drástica redução de reincidência. A sociedade precisa refletir sobre a quem serve o modelo repressivo-correcional que aí está.

Outra situação que se repete neste contexto é a morte de adolescentes que saem do sistema. Nós fizemos uma pesquisa chamada “Direito de viver com dignidade”, na qual identificamos 72 mortes de adolescentes em meio fechado. Quanto ao meio aberto, não temos dados, embora saibamos que as mortes também ocorrem. O Estado tem de se responsabilizar também pelo que ocorre no meio aberto e realizar um trabalho árduo para mudar esse quadro. Dizer, como no senso comum, que os adolescentes são os grandes responsáveis pelos atos infracionais, esquecendo completamente de olhar para a situação das políticas públicas voltadas para eles traz conseqüências perversas.

PRVL: Considerando que uma das lutas de mais destaque para várias organizações da sociedade civil consiste em formularestratégias de sensibilização da opinião pública para a defesa de direitos, que iniciativas tem dado certo no sentido de romper com a ideia de que o modelo punitivo é o mais eficaz no trato com crianças e adolescentes?

P.R.: Estamos enfrentando interesses e há pessoas que ganham com a prevalência dessa lógica punitiva.  A sociedade, em uma série de aspectos, estimula a violência e quer punir também de forma violenta.

O principal desafio é estimular o protagonismo. Só teremos condições de vivenciar de forma plena os direitos, quando as crianças e adolescentes também se apropriarem deste processo. Além deles, é essencial que se conte com a participação das famílias. Creio que valorizar o papel da família é fundamental porque a voz destas mães e pais é capaz de gerar identificação e de sensibilizar, no sentido de fazer reconhecer no outro questões que são suas.

PRVL: A lei determina a descentralização político-administrativa e a participação popular na formulação das políticas. Como você avalia a participação popular na construção de políticas públicas nos últimos anos, sobretudo, a participação de crianças e adolescentes nesse processo?

P.R.: Alcançamos conquistas em termos de fortalecimento de instituições da sociedade civil e também quando pensamos em alguns aspectos da difusão de informações sobre o Estatuto. Mas o grande nó é fazer com que as pessoas participem e que entendam que os espaços de tomada de decisões políticas exigem ocupação. É importante relembrar este valor num momento em que várias pessoas pensam que a política é algo que não lhes concerne, que é coisa de políticos. É preciso entender que a política não abrange somente os processos formais, mas o cotidiano.

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