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28/04/2010, 15:35h | Entrevistas

Humanidade para todos?

Será que algumas vidas, realmente, valem menos que as outras? A desumanização é resultado de um processo histórico de formação do Estado que, no Brasil, aconteceu sempre de forma violenta. É o que afirma o professor e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Luiz Antonio Machado da Silva.

Para o professor, nossa tendência é definir o outro como menos humano que nós, o que faz com que a vida desse outro valha menos. “Quando se fala em humanidade, se acha que está falando de todo mundo, mas na prática não está. As pessoas têm gradações de humanidade, que são essas gradações do valor da vida”, afirma. Machado é autor do livro Vida sob cerco: violência e rotinas nas favelas do Rio de Janeiro, entre outros. Acompanhe a seguir a entrevista completa com o professor.

Podemos dizer que o valor da vida hoje varia muito em relação ao território em que se vive. Por que isso acontece?

Todas as sociedades modernas ocidentais são sociedades estatais – o Estado é o centro discursivo da soberania. Não se pode falar em Estado sem se falar na forma moderna de soberania. E essa forma é uma espécie de teia de poder que produz discurso, práticas, sentimentos, emoções, que vão constituindo o poder do Estado. No Brasil, a constituição do Estado sempre ocorreu através de processos que usaram a violência física e que dualizam a humanidade, em termos de “nós e eles” – nós, humanos, e eles, desumanos ou menos humanos. E não foi só na escravidão. É uma compreensão restrita da humanidade. Quando a gente fala em humanidade, a gente pensa em todos os seres humanos. Mas não é assim que a gente pensa na nossa vida diária, porque nós discriminamos – somos nós, os seres humanos, e eles, os bárbaros, os imigrantes, os favelados. Não são tão humanos quanto nós. E não são mesmo, porque pela violência que constitui a soberania do Estado, eles são postos como subumanos. Isso hierarquiza a humanidade de uma forma que não é reconhecida formalmente nem por nós, nem pela literatura, pela academia. Quando se fala em humanidade, se acha que está falando de todo mundo, mas na prática não está. As pessoas têm gradações de humanidade, que são essas gradações do valor da vida.

Existe hoje no Rio de Janeiro um política diferenciada do que vinha sendo praticado em termos de segurança pública, que pretende “pacificar” as favelas, com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Essas Unidades de alguma forma amenizam este problema?

Antes das UPPs, a violência física era maior e, além disso, o discurso sobre violência era mais violento. As UPPs são muito recentes para a gente fazer qualquer afirmação categórica. Mas o que elas podem fazer é colocar um grãozinho de diferença nesse processo, e é nisso que tem que se apostar, fazendo isso de uma forma que possa ser debatido publicamente. Eu tenho um artigo, por exemplo, que fala das UPPs como uma política muito específica, não como estado de exceção, porque assim nós entramos no repertório público, não das academias, da radicalidade militante. Eu estou falando as mesmas palavras que o Sérgio Cabral, mas com uma perspectiva histórica e uma visão totalmente diferente da dele. Eu acho que a UPP pode transformar alguma coisinha neste processo de desumanização.

Muito se fala sobre a transferência da criminalidade para outros espaços periféricos da cidade ou mesmo para o interior do estado. Essa desumanização não pode estar sendo apenas sendo transferida?

Não é mensurado se está havendo um deslocamento ou não da violência. Não há procedimento estatístico representativo que permita dizer sim ou não. Mas pode-se imaginar, pelo simples fato de que bandido não é tapado e não vai ficar dando murro em ponta de faca. Mas isso é absoluta especulação e medo. Medo é muito diferente de indignação. O medo aumenta a desumanização, afasta. Só pelo fato da gente falar publicamente sobre o assunto, é possível que haja um maior relaxamento. A percepção, o sentimento das pessoas com relação a isso é muito importante. Se isso acontece, as críticas à atividade da polícia podem aparecer e aparecerem, pode gerar um processo, uma bola de neve virtuosa. Essa é uma possibilidade. Você precisa fazer críticas que sejam audíveis.
Acho que atacar a desumanização diretamente não adianta. Porque os processos que desumanizam são muito pesados, você não consegue interferir.

A ação da polícia, então, não resolve o problema sozinha?

Acho que nós estamos vivendo um momento em que o medo faz com que as pessoas não queiram se relacionar com o Outro. Quando a pessoa se cerca em condomínios fechados, com cerca eletrocutada, segurança privado, câmeras de vigilância, carro blindado, o conflito de classe fica deslocado para dentro da rotina cotidiana. Ao invés de ser um processo na esfera orgânica, pública, fica uma briga de vizinhos. O problema atual imediato é que não há público no Brasil, só há privado. Não há confronto de ideias entre grupos sociais que se reconhecem. E não é do reconhecimento da dignidade que eu estou falando, é o reconhecimento literal. É preciso reconhecer que o favelado, a empregada doméstica, o motorista do ônibus é um Outro, não é aquele que a gente deve evitar. O que existe agora é uma absoluta política de evitação, de medo. Não se pode atacar isso diretamente. Só pontualmente.

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